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Trabalhador é agredido após denunciar trabalho análogo à escravidão no RS
Um trabalhador da Bahia, que veio ao Rio Grande do Sul atraído por uma boa oportunidade de emprego na colheita da safra da uva na Serra Gaúcha, foi vítima de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves. Revoltado com a situação, ele gravou um vídeo para as redes sociais, sofreu agressões e até ameaças de morte, mas conseguiu fugir pelo mato.
A sua história de resistência e luta pela dignidade no trabalho foi relatada em reportagem publicada nesta quinta-feira (23) pelo jornal Pioneiro, de Caxias do Sul. Sem se identificar, o trabalhador conta a exploração que sofreu de uma empresa terceirizada em meio aos parreirais, o que precisa ser combatida com todo o rigor da lei pelas autoridades do mundo do trabalho.
Leia a íntegra do texto!
“Tomei cadeirada e spray de pimenta”, diz homem agredido após denunciar situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves
Vitória Leitzke – Pioneiro
Era 20h de terça-feira (21), quando Marcelo* viu em uma ligação a oportunidade de fugir. Ele estava sendo agredido, após divulgar, em um grupo de rede social, um vídeo relatando que era obrigado a trabalhar com roupa molhada e que era alimentado com comida estragada.
A situação, caracterizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) como análoga à escravidão, ocorria desde o início do mês em Bento Gonçalves.
Marcelo* aproveitou que os homens que o agrediam foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até 3h da manhã desta quarta (22) para sair pedindo ajuda.
Eles conseguiram, através de um telefone que ficou escondido em um dos trabalhadores, entrar em contato com a família, em Salvador (BA), receber uma transferência bancária para conseguir ir até a rodoviária pegar um ônibus. Pararam em Caxias do Sul, onde foram ajudados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF).
O trabalhador baiano veio para a Serra gaúcha atrás de uma oportunidade de trabalho e de sustento que parecia boa, com salário de R$ 3 mil, com alimentação e alojamento inclusa.
“Ele (o aliciador que trouxe os trabalhadores) enviou um link geral, que caía em qualquer site, em qualquer aplicativo. Aí um colega meu, pelo fato de eu, todos os dias, pedir a ele um trabalho, ele viu esse link e falou. Eu disse para ele mandar para mim, de primeira eu vi R$ 3 mil limpo, com comida, café da manhã, alojamento, sem gasto nenhum, tudo na conta deles. No dia que a gente veio ele (o aliciador) fez aquela palestra, uma reunião mentirosa, fazendo uma fantasia, fez a nossa mente”, relata Marcelo*, que viajou por quatro dias e meio até Bento Gonçalves.
Ele conta que, ainda na estrada, começou a notar que a realidade não era como prometida. O gasto com comida nas paradas – em lugares caros, segundo ele – já estava sendo descontado do salário.
A promessa de banho quente e descanso ao chegar também não foi concretizada, Marcelo* afirma que o banho era em uma torneira gelada e que foram acordados duas horas antes do combinado para ir para o trabalho.
“Tinham dito que íamos acordar 6h da manhã para trabalhar, mas não aconteceu nada disso. Às quatro horas nós estávamos sendo acordados para ir trabalhar. Logo no primeiro café da manhã faltou pão e café para trabalhadores, não só na roça que eu trabalho”, complementa.
O trabalhador diz que conseguiu relevar na primeira semana, achando que melhoraria, mas ao longo das semanas seguintes, foi ficando revoltado com a situação. Foi quando decidiu gravar o vídeo, que acabou sendo motivo de violência e de ameaça de morte.
“Tomei cadeirada, spray de pimenta, estou com os dentes moles. Eu escutei eles falando que um carro estava vindo para levar para me matarem. O tempo dos escravos eu não vivi, acho que nem minha bisavó viveu. Hoje vai existir escravo de novo? Não vai. O que depender de mim, não vai, eu vou abrir minha boca, eu vou falar que ‘tá’ errado”, defende Marcelo*.
Enquanto o trabalhador fugia, o grupo que veio com ele era ameaçado para falar seu paradeiro.
“Eles falavam ‘você vai ter que dar (o número do telefone) ou você vai morrer. Todos que vieram com ele vão ter que morrer’”, conta Tiago*, que fugiu na madrugada desta quarta, para Porto Alegre, com medo da morte.
Tiago* conta que o grupo era do mesmo bairro e alguns da mesma família. Além das péssimas condições de alojamento, eles trabalhavam das 5h às 20h, sem pausa, com direito de folga apenas aos sábados — entretanto, eram obrigados a assinar no ponto que folgavam também aos domingos.
“Eles nos acordavam gritando ‘bora seu demônio, dormiu a noite inteira e ‘tá com preguiça?’. Era um bocado de gente num quarto só, um abafamento, não tinha ventilador, não tinha TV, comida ruim. Uns dormiam no chão, porque o quarto estava cheio”, diz Tiago*.
Além de Marcelo* e Tiago*, outros 150 trabalhadores foram encontrados em situação análoga à escravidão na noite desta quarta. O número pode aumentar, de acordo com a PRF, em função da chegada de outros trabalhadores que trabalham à noite.
A operação, que segue acontecendo no bairro Borgo, conta com agentes da PRF, Polícia Federal e MTE. Todos os baianos estavam com vínculo empregatício com uma prestadora de serviço, que atua na colheita da uva e no abate de aves.
Até o momento, a reportagem não conseguiu contato com os donos da prestadora de serviço e da pousada em que os trabalhadores estavam.
*Para preservar a identidade dos trabalhadores, foram utilizados nomes fictícios.
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Operação combate trabalho análogo à escravidão na colheita da uva no RS
Foto: Porthus Junior / Agência RBS
Fonte: CUT-RS com informações do Pioneiro